26.9.09

Da poesia e da verdade


Não tenho outro modo de começar um texto abordando, ainda que brevemente, a poesia de Maria do Rosário Pedreira sem dizer de imediato que a amo, à Maria do Rosário e à sua poesia, inequivocamente. Por mais inusitada que seja uma apresentação assim, é a mais pura verdade, e a verdade tem tudo de científico, como é bom de entender. Cientificamente, posso agora explicar que quando o meu ex-sócio numa aventura editorial me disse que tínhamos visita marcada à casa desta poeta, eu glorifiquei o dia em que o conheci porque andava com o volume A casa e o cheiro dos livros atravessado no coração há muito e não havia maneira de o tirar ou fazer com que me queimasse menos. A Margaret Atwood diz que querermos conhecer um autor porque se gosta de ler os seus livros é como querer conhecer um pato porque se gosta de foi gras. Mas eu, que adoro a Margaret Atwood, acho que este exagero é um pessimismo com o qual não devemos corroborar. Fui a casa de Maria do Rosário Pedreira com pezinhos de nuvem, tímido, sorrindo como os meninos perante docinhos coloridos e, sem saber o que dizer, pus-me a ouvir para me impregnar da mirabolante oportunidade de estar ali. O meu ex-sócio fez o blá blá blá dele, que era mais para negócios do que para outra coisa, e eu queria apenas que aquela senhora percebesse que a minha vida depois dos livros dela adquirira para sempre uma cotação muito maior na bolsa da alma. A partir desse dia, lentamente mas com segurança, a Maria do Rosário Pedreira completou para mim os seus poemas com a amizade que a Magaret Atwood, maravilhosa e errada, não soube prever.

Em Fevereiro de 2009 falar da poesia de Maria do Rosário Pedreira tem de ser – e eu faço questão de o sublinhar – um protesto pela sua mania das longas ausências. Com uma estreia algo escondida em 1989 (Água das pedras, sob o pseudónimo Maria Helena Salgado, Publicações Folha d’Hera), aquilo a que se deita mão quando queremos considerar esta poeta são apenas três títulos: A casa e o cheiro dos livros (Quetzal Editores), de 1996, O canto do vento nos ciprestes (Gótica), de 2001 e Nenhum nome depois (Gótica), de 2004. Três livros que, bastando embora para tornar a autora indispensável, nos mostram de imediato a sua raridade e com que esperança difícil lidamos enquanto não volta a publicar.

Quando em 1996 é editado A casa e o cheiro dos livros estávamos a meio de uns anos 90 de poesia esfriando, como recatando-se, ainda que cada vez mais recuperando tópicos de uma pretensa realidade quotidiana ou simples. Estávamos longe das manifestações mais vulcânicas das décadas passadas em que poetas como Al Berto ou Luís Miguel Nava (nos 70), ou Isabel de Sá, José Emílio-Nelson, Jorge Sousa Braga e Adília Lopes (nos 80) enunciavam o poema como carne viva, doendo, magoando, criando um efeito de exposição e assunção incríveis que, como resultado, levava a uma linguagem de confissão que tende a conquistar o leitor pelo lado mais difícil da vida. O que quero dizer é que aquilo que me importa nestes poetas, os meus preferidos de entre as suas gerações, é uma mesma energia quase sem pudor com que vulnerabilizam o sujeito poético e o perigam de tudo na narrativa própria do poema. Dizia eu que quando é publicado O canto do vento nos ciprestes há uma interrupção na poesia estreada já nos 90 que recupera inesperadamente essa mesma energia do poema como nu: o poema que provoca a impressão da mais pura intimidade. Isto acontece, de facto, inesperadamente, porque Maria do Rosário Pedreira volta a valorizar, como temática maior, a mais arriscada de todas: o amor, ou, com rigor, o desamor. É claro que abundam declarações e queixas amorosas um pouco por tudo quanto se escreve, mas não assim, não fazendo apelo àquela vulnerabilização total, a um lirismo de sabor antigo que faz apelo ao lugar da mítica donzela das Cantigas de Amigo, eternamente esperando pelo amado que eventualmente nunca chegará. Já não se lia nada assim desde há muito e parece-me que, com esta qualidade, só podemos encontrar família para Maria do Rosário Pedreira na perfeita Mariana Alcoforado e nas suas obrigatórias Cartas portuguesas. Há um mesmo abandono na poesia de uma e epistolografia de outra, há esse mesmo sentimento de padecerem as coisas de uma efemeridade incurável que deixa o sujeito amador num carrossel de sentimentos, entre saber que o certo é o amor não vingar mas, ainda assim, amar como se o impossível pudesse um dia acontecer.

Por vezes, entre o amado que vai partir, o amado que já partiu, ou o amado que pertence por completo ao sonho, a poesia de Maria do Rosário Pedreira é sempre uma mulher de coração nas mãos, frágil, aprendendo a aguardar, até não poder mais: «Não partas já. Fica até onde a noite se dobra / para o lado da cama e o silêncio recorta / as margens do tempo.» (A casa e o cheiro dos livros); «Dizem os ventos que as marés não dormem esta noite. / Estou assustada à espera que regresses (…)» (A casa e o cheiro dos livros); «Mãe, eu vou-me embora – esperei a vida inteira por quem / nunca me amou e perdi tudo, até o medo de morrer.» (O canto do vento nos ciprestes).

Eu compreendo bem os leitores de Maria do Rosário Pedreira que vivem com nós no estômago e que, aqui e acolá, se abeiram da autora com o cuidado bonito de quem acreditou nos seus textos. Compreendo porque, independentemente da factual veracidade destes, na qual não é importante acreditar, o efeito da sua poesia é aquele da intimidade que nos induz a uma sensação de ficar perto, de chegar perto ao mais genuíno de alguém. E essa genuinidade, sim, se passa no poema, é sempre verdadeira. Este é o triunfo de uma poesia deste género, em que se recupera o efeito de carne viva com a coragem de suportar depois o quanto a carne viva impressiona as pessoas. Por aqui também se justificará um pouco a preciosidade que é uma poesia assim, feita do mais difícil dos temas – absolutamente o mais arriscado e o que mais levou poetas ao fracasso –, e por isto se entende ainda que tenhamos de ir até Mariana Alcoforado, no virar do séc. XXVII para o XVIII, para encontrar uma referência válida à altura do que agora se analisa.

«Quando eu morrer, não digas a ninguém que foi por ti.» (O canto do vento nos ciprestes), diz Rosário Pedreira num poema onde, resignadamente, o sujeito poético se vulnerabiliza e tenta anular. É o este mesmo sujeito poético que, para o que à literatura importa, se fortalece cada vez mais, isolado por ser agora tão único na poesia dos nossos dias, contribuindo para evidenciar a poesia feminina de alguém que a História seguramente amará, como amam e amarão todos quantos saibam ler o coração.

Hoje é dia de S. Valentim, mas mesmo que não fosse, esta declaração de amor seria, do mesmo modo, assim.

Valter Hugo Mãe, sobre Maria do Rosário Pedreira
tirado da net